quarta-feira, 30 de janeiro de 2019










dessa viagem
que é pura existência
tudo se explica
pelo que toca na pele

o sol é mais que um poema
enquanto ilumina e aquece
o que consola e aflige
é a vida e seu destino premente

quem me olha do espelho
sabe quais são meus segredos
o que ficou em meus dedos
senti quando toquei seus cabelos

daqui até onde se chega
independe de quais caminhos se toma
esqueça de mim e me chame de volta
deixo-te um beijo pregado na porta











palavras boas 
de serem pronunciadas
gostoso, gostosa, 
todo gosto em dizê-las
saem cheias da boca 
e dá vontade comê-las
tal o gosto saboroso 
que delas emana
ai, doce língua portuguesa
como tornas mais gostoso
as coisas de que se gosta
só por dizê-las gostosas
só por dizê-las pitangas
carambolas, amoras
só por dizê-las laranjas
gostoso gosto que aflora
do corpo da moça que passa
gostosa fonte primária
do mais ardente desejo
da mais genuína poesia
















cale-se
estão nos ouvindo
não escreva
estão nos vendo
finja que está olhando as estrelas
e perceba que estão nos seguindo
sinistro este homem
que se esconde atrás de falsas mensagens
e de vídeos ridículos
cuidado, arapongas, milícias
filtrando tudo que consideram suspeito
apague, apague, não compartilhe
evite estes textos de auto ajuda
há comprovados indícios
que sejam de Marx ou de Nietzsche
desconfie do amigo fardado que envia correntes
e jamais o contrarie
atenda o pedido e as passe adiante
de graças, de graças, e não se oponha
à crença do  vizinho do lado
amém Jesus, amém Jesus
o tribunal está a postos pra cumprir a sentença
amém Jesus, amém Jesus
viva os revolucionários
finalmente os bons tempos voltaram

terça-feira, 29 de janeiro de 2019










o fogo diz ser a verdade
a água diz que crê
na palavra do fogo
mas se o fogo esquenta
a água evapora
e se a água jorra
o fogo se apaga
fogo e água
verdade e crença
presenças daquilo
que como tudo que é
parece ser parte
parece ser único











acho que agora me esqueço
isto era coisa de quando fui moço
assim como esta
havia outras tantas, que só aquele tempo
continha
e daquele tempo, meu caro, 
só as histórias é que ficam
e isso, quando a gente delas ainda se lembra
pois é...
como nós, elas envelhecem e se acabam no escuro
é isso...
brilho,
esse é o caso
o brilho das histórias, assim como o nosso,
também vai se apagando











o problema era aquele
esse que eternamente nos atinge
você sabe que não sabe
você sabe que não pode
você sabe que se tentar
é certo que vai dar errado
e aí você aposta só pra provar
que sabe e que pode
e aí você se fere do prego ao caco de vidro
e de quebra leva ainda
uma cicatriz pro resto da vida
o fusca branco
fafá sete nove
quase novo
o declive acentuado
a saída de ré
o portão estreito
outro carro do lado
mas estava em jogo
a perícia e o destemor
do fabuloso motorista
recém chegado ao mundo
felizmente nem mortos, nem feridos
um fim de semana frustrado
um motorista abatido
um paralama amassado
e uma cicatriz invisível
- que não sei como explico
em que parte ela fica -
que se manifestou de repente
e se transformou nesse poema acidente












se for preciso 
vamos
se nos chamarem
vamos
se forem muitos
vamos
se forem poucos
vamos
se desistirem
vamos
se persistirem
vamos
se afirmarem
vamos
se negarem
vamos
se for por isto
vamos
se formos juntos
sempre










tenha calma
deixe o tempo aos cuidados da sua alma
seu corpo eu conheço
e pressa também não tenho
pressa é coisa de quem não sente
e isso definitivamente não é o meu caso
conte-me o filme desde o começo
e se atrapalhe bastante explicando todas as partes
cante aquela que você gostava
e não importa se era do Chico ou do Wando
quero só ouvir o que seu canto tem pra cantar
quero só estar com o que está guardado em você
e que até hoje não fui capaz de saber









quando perdi
meu coração chegou adiantado
por isso falei
a inoportuna palavra
por isso me vi
brilhando diante dos olhos
por isso entrei
aonde não fui convidado
quando encontrei
meu coração chegou atrasado
por isso calei
a decisiva palavra
por isso não vi
nenhum brilho nos olhos
por isso parti
enquanto era chamado

domingo, 27 de janeiro de 2019









enquanto não chega o que esperamos
restam os pingos da chuva
que caindo vão nos contando
sobre as vertigens das nuvens
sobre as incertezas do ventos
sobre a turbulência dos mares
que disfarçados de verde
se fingem azulados
enquanto o que esperamos segue viagem
resta-nos a água das fontes
que nas pedras vai nos dizendo
do frenesi das cascatas
da solidão das lagoas
dos descaminhos dos rios
que aflitos se entregam ao salgado destino
enquanto o que esperamos vai indo
não despertamos para aquilo que resta
mas como somos também aquilo que resta
esperamos dormindo pelo nada
que a destruição vai construindo


sábado, 26 de janeiro de 2019









deixei estar
o que não era pra ser
- o amanhã poderá
sonhar como eu sonhei -
contei até três
e não olhei para trás









tudo mais é além
e além pode estar
longe demais
e além pode ser
o que me chama pra ir
tudo mais é além
sendo além o lugar
afastado de mim
sendo além o lugar
que me leva daqui










pergunto-me
se continuo esperando
até quando?
pergunto-me
se continuo guardando
até quando?
pergunto-me
se continuo cuidando
até quando?
então fico pensando
no mar que passou por aqui
no sol que sempre me vê
na água que amo
e pra quem não consigo mentir
e tudo isso vem me dizer
que quando vira porquê
não é esta a pergunta
que eu deveria fazer












quando olho pra fora
vejo o mar
vejo as pedras à beira mar
o mar sob o sol
e as ondas que vêm
molhar os meus pés
quando olho pra fora
o mar está tão distante
mas há um mar em mim
por onde navego
e molho meus pés
assim como vem
quando olho pra fora
alguém encontrar-se comigo
por onde navego
e molho meus pés











ser homem e ser mulher
salvo caracteres anatômicos
são seres iguais
salvo também
que há mulheres boas
excepcionalmente boas
capazes de cuidar
o cuidar considerado
como fim em si mesmo
desconheço homens
nessa mesma condição
mesmo que pareça tolice
afirmo sem me questionar
toda bondade masculina
só é capaz de cuidar
o cuidar considerado
com outro fim determinado













eu tive o tempo
como se hoje
tivesse me esquecido
do tempo que tenho
eu tive os sonhos
com se hoje
os meus sonhos sonhados
jamais tivessem existido
eu tive amores
como se hoje
tudo aquilo que amo
fosse apenas vagos sabores
eu tive a vida
como se hoje
o que vou vivendo
fosse sombra que vai sumindo




























aprendi o melhor que poderia ter aprendido
com um professor que me confidenciava
que ensinar era o que ele menos sabia
e apesar de seus tantos anos de cátedra
ele dizia que cada vez que entrava na sala
sentia algo semelhante à primeira vez que ensinara
a sua incerteza das coisas era tão expressiva quanto o que conhecia
sua fala era sob medida, como se mastigasse as palavras, digerisse-as
e transformadas em alimento, ele então as revelava e nos nutria
parecia que desconfiava de tudo aquilo que afirmava
e isso se dava de uma forma encantadora
encanto no seu sentido mais genuíno
encanto que encantava, encantamento, feitiçaria irresistível
que nos tirava o chão e nos dava o céu
mas um céu inesperado, com milhares de portas abertas
um firmamento que tinha seus fundamentos no duvidar de quem sabia demais
ou se quiserem, no amor de quem construia o saber
a partir da sabedoria, que vê naquilo que é
aquilo que pode não ser










que nada cesse
o seu movimento
que nada desvirtue
os desígnios da natureza
que o espinho que fere
permaneça ferindo
que a rosa entreaberta
continue se abrindo
que o dia aflitivo
aconteça na hora prevista
que seu dia de festa
seja sempre o dia de hoje













frio, fome, fumaça
tudo passa
já dizia meu avô
naquele tempo
em que a guerra fria era ameaça
e eu me escondia debaixo da mesa
com medo do fim do mundo
o mundo tai
passou meu avô
mas a ameaça persiste
e hoje são tantos seus nomes
que não sei mais dizer
se debaixo da mesa
é ainda um lugar seguro
pra eu me esconder


 










voando, zarpando
caminhando, seguindo
só sabendo
se vou encontrando
só falando
sobre o que vai me dizendo
destino não é onde chego
onde chego 
não está me esperando
todo lugar tem um nome
que me deixa perdido
achei o que não procurava
enquanto dormia 
um sono tranquilo
alguém que passava
deixou seus olhos comigo
se fico com eles
não vejo mais nada
se os perco de vista
são eles que vêm
à minha procura









de madrugada
com muito cuidado
bem de mansinho
como pede o ofício
fui em silêncio
capturar uma estrela
afinal era isso
o que ela queria
e eu jamais poderia
frustar seu desejo
mesmo que fosse
em troca do encontro
que não seria marcado
mesmo que fosse
em troca do beijo
que me seria negado









o que em mim se contradiz
é o melhor
de tudo o que me faz
aprendiz do meu modo humano
de ser

terça-feira, 22 de janeiro de 2019










somos nós
o que podemos ser
todo poder ser
conhecemos como se dá
sendo - e estando aqui -
aqui que já era tempo
bem antes de tudo existir








atravessarei um campo aberto
rumo aos montes 
que adiante se anunciam
claro que o farei sozinho
claro que sozinho 
saberei a distância
e será só meu o cansaço
e será só minha a esperança
e farei do meus passos
a minha dança, a minha lança
o cão que me segue
e farei dos meus braços
o meu escudo, o meu abrigo
o cão que me afaga
e farei do caminho 
o cão que me guia
do fim ao começo
de volta ao ventre materno













dividir
pra que?
se o que me pediu
era meu
e eu
podia guardar
só pra mim
guardei, escondi
não dei a você
tudo aquilo
que também
eu perdi









outros poetas me inspiram
não que eu me considere 
poeta tal como eles
mas se os leio e sinto 
o que deles vai no escrito
algum ser mexe comigo 
e a minha vontade inteira
é de escrever qualquer coisa
que diga tudo que sinto
sobre aquilo que ouço
sobre aquilo que vejo
sobre o que seja
aquele quem fui
aquele que sou
aquele que está
de longe olhando pra mim
e me desafiando a dizer
como é que foi
que tudo tanto viveu
     que tudo tanto morreu
dentro de mim












a chuva à tarde vista da varanda
traz consigo um convite
para uma viagem ao esquecimento
para um encontro inesperado 
com os sonhos desfeitos
aquilo que estava adormecido
brota com a água 
que escorre dos ramos molhados
brota da intensidade do cinza 
que a paisagem irradia
e descobre um tempo 
que nem sei aonde estava

domingo, 20 de janeiro de 2019













a pedra que vejo aparece-me tal como é
pois que aprendi a vê-la
tal como foi-me ensinado
no entanto se atento para o que me revelam as pedras
aprendo coisas diversas do que sobre elas foi-me ensinado
assim é que tropeçando, salto
assim é que arremessando, avanço
e na transparência dos rochedos
enxergo além do que antes era me dado ver















viagem das cores
quando só de passagem
na tarde estiveram
















partiu 
era mar
daí este azul
que em mim
lentamente
não se desfaz