quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019











o poeta faz da fome
o seu alimento
a sua iguaria
faz da sua sede
a sua vinha
a sua água de mina

sua mesa enfeitada
com paisagens da vida
dispersas no tempo
acolhe os que sentam ao seu lado
e repartem com ele
a sua comida
a sua bebida


















no quarto da menina morta
ninguém entra
na porta do quarto da menina morta
ninguém toca
no nome da menina morta
ninguém fala

quando me ausento pelos caminhos
que a poesia me leva
a porta fechada daquele tempo se abre
e lá dentro onde repousa a menina morta
vejo em seu rosto
os traços desfeitos da minha inocência














tudo pronto e sob medida pra ela
tudo dela como ela sempre sonhara
solar, cobertura, motorista na porta
céu e mar, viagem quando quisesse
ouro e prata, dinheiro na conta
e uma cadelinha Filó 
com vestido de madrepérola
mas ela era daquelas que só fazia
o que seu coração mandava
e trocou minha oferta 
por um refinado malandro
que além de tudo, não lhe dava nada
e de quebra,
ainda tirava o que ela não tinha











comigo você se alegra
comigo você sonha
comigo você pode
comigo você comanda
comigo você sente
comigo você pensa
comigo você existe
comigo você fica









quando a gente era dia
brincava, brincava, brincava
quando a gente era noite
rodava, rodava, rodava
quando a gente queria
corria, corria, corria
quando a gente cismava
escondia, escondia, escondia
quando a gente fugia
apanhava, apanhava, apanhava
quando a gente sonhava
sorria, sorria, sorria
quando a gente caia
chorava, chorava, chorava
quando a gente...tudo era
alegria, alegria, alegria
quando a gente...tudo passa
saudade, saudade, saudade
quando a gente...nada fica
entristece, entristece, entristece
quando a gente vai se embora
escurece, escurece, escurece










lá está ela
tão velha
quanto aquelas paredes
tão desprezada
quanto o musgo 
ao pé dos muros
tão distante
quanto os que habitam
outros mundos
tão sem saída
quando Dédalo
no labirinto
tão invisível
quanto os fantasmas
que permanecem na casa
tão investida nos seus disfarces
de viva e de morta
quanto possível









quando acordamos
nunca sabemos
de onde chegamos

exceto aqueles inconformados
que quiseram saber
e nunca mais encontramos







Arquimedes gagueja e não aceita nenhuma proposta
- Vamos sair Quiqui?
- Ah,vou não...vou não...
- Vou nada.
- Vamos passear Quiqui?
- Ah,vou não...vou não...
- Vou nada.
Arquimedes se assusta com tudo lá fora.
Arquimedes se agarra aos limites da sua cadeira de rodas.
- Vamos te levar Quiqui...
- Ah,vou não...vou não...
- Vou nada.
- Vamos embora Quiqui...
- Ah, vou não...vou não...
- Vou nada.
Arquimedes só fica e desconhece o giro da terra.
Se o mundo viesse fazer-lhe um convite...
- Vamos girar Quiqui...
- Ah, vou não...vou não...
- Vou nada.
















a minha calma se faz
do meu amor pelas coisas mais despretensiosas
aquelas para as quais se olha e delas se pensa
que valem menos que uma pétala de rosa
ou que sequer se olha e sequer se pensa
quaisquer que sejam olhar e pensamento
perco meu tempo com a passagem branca das nuvens
com o canto sonoro dos pingos da chuva
com o brilho que fala nos olhos dos bichos
e esse tempo perdido, venho perdendo
desde quando eu era menino
ou quem sabe até antes do menino que eu era
já me acalmasse sendo o próprio tempo
do branco que passa
dos pingos que cantam
dos bichos que falam













quando perdi
meu coração chegou adiantado
por isso falei
a inoportuna palavra
por isso me vi
brilhando diante dos olhos
por isso entrei
aonde não fui convidado

quando encontrei
meu coração chegou atrasado
por isso calei
a esperada palavra
por isso não vi
nenhum brilho nos olhos
por isso parti
enquanto era esperado

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019














se fosse noite eu ficaria
mas o dia me convidava
e naquele convite
tanta margarida floria
que mais que depressa
escorri feito água
deslizei como nuvem
no tempo daquele dia
se alguém pedisse
para que eu esperasse...
no tempo daquele dia
talvez um pedido
até me foi sussurrado
porém no tempo daquele dia
eu era só água que escorria
eu era só nuvem que deslizava










estão indo...
e junto com eles também lá se foram
os nossos cadernos, os nossos estojos,
o livro do catecismo, os nossos brinquedos,
os nossos segredos, que eles sempre souberam,
as nossas pequenas mentiras, que eles fingiam que acreditavam,
os nossos medos, que eles cuidavam, cantando cantigas e contando histórias,
as nossas moléstias, que curavam com santos remédios e muita ternura
estão indo...
e vão deixando naqueles lugares onde estivemos
alguma coisa que é mais que lembrança
alguma coisa que é mais que saudade
alguma coisa que nos chama e que nos abraça
alguma coisa que nos leva ao encontro daquela criança
que permanecerá para sempre junto com eles











os sonhos enfileirados
ora sonhavam, ora acordavam
sonhando erravam, dividindo e multiplicando
se eram chamados
para responder aos inquisidores,
acordavam assustados, 
por que sonhavam com seus amores
presente nos sonhos, 
só estava o futuro com que se sonhava
e o sonho todo se confundia e se engasgava,
com o futuro do subjuntivo
viajavam os sonhos para os lugares
em que só os sonhos viajam,
mas se espantavam e se perdiam,
com latitudes que não sabiam onde ficavam
os sonhos enfileirados 
eu os sonhei outro dia
enquanto lembrava 
dos sonhos que havia esquecido









o último a saber, 
não soube de nada
e todos que souberam, 
reagiram cada qual a sua maneira
alguns partiram e se perderam em outros lugares
outros ficaram e se protegeram, 
iludidos de que estavam seguros
o último a saber, 
que nunca soube de nada
permaneceu impassível ali onde estava,
pois sendo o mundo do jeito que era
saber respirar era pra ele o quanto bastava

domingo, 3 de fevereiro de 2019











não se trata de contar
o que  meu pensar quer dizer
é preciso fazer viajar
aquele que lê
ninguém quer saber
se cantei, se chorei
mas como e porque
foi meu cantar, foi meu chorar
escrever é dividir
o igual do sentir
escrever é somar
o de alguém com o meu
é preciso ir
seja qual for o lugar
nunca sei onde está
quem me quer encontrar
é preciso voltar
no tempo que foi
quem está por aqui
talvez estivesse por lá
para cuidar bem
do que procuro expressar
sem distorcer e confundir
o que o poeta vem me dizer
deixo estar o que está
deixo ser aquilo que é













o silêncio se aflige
e nos chama
calamos
o silêncio se afasta
e nos deixa
olhamo-nos
e ruidosamente...
cuidamos do nosso destino












fica para sempre
quem desperta comigo
e vai-se embora
num dia que não quero
num dia que não espero
num dia que não sei quando
num dia que desejo
que sendo naquele dia
seja
depois que eu não veja
depois que eu não sinta
depois que eu não esteja






















das paineiras floridas
colossais sob o sol das manhãs
das salas, janelas, escadas
e da louca correria
a que se davam os meninos
durante o recreio
só restou um longínquo
vago e solitário passeio
pelos recantos escuros
cada vez mais sombrios
que casualmente a memória
ainda me faz percorrê-lo



















se me descuido
o passarinho vem
comer a comida do gato
se me descuido
do passarinho faminto
ele é que vai
virar comida de gato











se foi o diabo, esconjuro
que foi Deus não afirmo, se foi
desconfio que errou na dosagem
deu-me pela metade
ou quem sabe bem menos ainda
este dom pra escrever tanta bobagem
e junto com isso uma infinita vontade
de escrever tanta coisa bonita
que sinto que existe e guardo comigo
mas não sei como faço
pra descobrir onde é que fica











em chamas ardentes
aqueci alguns versos
depois os poli
em ásperas pedras
tornaram-se os versos mais estrelados
que pude escrever
tornaram-se raros pelas estrelas
que neles podiam se ver

em cinzas sombrias
transformei alguns versos
depois os lancei
em trilhas de ventos
tornaram-se os versos mais desolados
que pude escrever
tornaram-se meus pelo deserto
que neles podia se ver










quase quase quase
asas abertas
guelras na face
quase quase quase
trinados nos lábios
escamas no ventre
quase quase quase
penas no crânio
nadadeiras nos braços
quase quase quase
acontece menino voando
acontece menino oceano
quase quase quase
desfalece mãezinha
mortinha de susto











o que faço comigo?
se depois de tudo que fiz
ainda persisto
nessa mesma pergunta

se olho o passado
é como se visse
eu ao meu lado
ouvindo essa mesma pergunta

se me pergunto
porque não me esqueço
sei que é essa a resposta
para aquela mesma pergunta

mas se me deixo e me esqueço
apareço-me num outro
que me olhando pergunta
e então, o que fizeste contigo?














a minha poesia
é uma água rasa
se alguém pisa
a terra cede
e a lama logo cobre
os seus pés
a minha poesia
talvez por ser minha
é um brilho baço
de uma pequenina lua
que quando se olha
coisa alguma se vê