domingo, 28 de maio de 2017















Andei por estas ruas
o quanto poderia ter andado
sai por pouco
e o mundo lá fora seria
mas encontrei-me de volta

O relógio
os móveis da sala
me olham e indagam
como se houvessem esquecido
como se não reconhecessem
esse que sempre os visita
desacompanhado daqueles que estavam















Olhei pela janela
eram cinco da tarde
quarenta anos haviam passado
do outro lado da rua
a mesma fachada
a mesma mangueira
as paredes rachadas
aquele quarto era dela
agora a vejo
agora a beijo
e a abraço apertado
quanto podem meus braços
mas ela está morta
nada mais resta
senão aquilo que vejo
a casa velha deserta
















Seria o começo
não fossem as chuvas
daquele janeiro
seria perfeito
como um mistério
de Hitchcock
como um soneto
de Florbela Espanca
como um verso
de Chico Buarque
como um hipérbole
um ângulo reto
como o canto afinado
de um pássaro preto
seria o começo
com um beijo molhado
não fosse as chuvas
daquele janeiro



















Não se pensava
que aqueles iriam
não se esperava
os que vieram
vaso de flores
que se renova
árvore plena
que permanece
e brilha
família














Faltavam quinze minutos
quinze irrisórios minutos
seriam nada
não fossem espera
cafeína, nicotina
cafeína...
assim iriam os quinze
mas assim não se foram
o coração aos saltos
não se continha
demoravam horas
aqueles minutos
ela vinha
ela não vinha
vinha...
não...
ela...
















Fiz preces
faço preces
quem me falava de Deus
já morreu
não fala mais nada
não se manifesta
mais ainda me toca
quando estendo a coberta
e permanece ao meu lado
onde quer que eu esteja


















Você viria
caso soubesse
o que comove
também entristece
se fosse preciso
choraria contigo
e me alegraria
por não ter chorado sozinho
















A pedra, a palavra, a madeira
a lavra do artífice
o verso
a silhueta
o entalhe
o cuidado
a delicadeza
a sensibilidade
o belo
o mágico
o transcendente
o pensamento
a calma
a plenitude














Amores não são dias
que terminam e logo se refazem
amores para sempre se perdem
e deles
jamais se sabe
amores se convertem
em peregrinos errantes
que seguem para lugares incertos
amores se calam e silenciam
sobre tudo que já disseram

segunda-feira, 22 de maio de 2017


















Remos partidos
cansei da viagem
apenas vagueio
não retorno, não sigo

Permaneço à deriva
sem força, sem vontade
à merce das águas
que correm e não sabem
se me levam adiante
se me deixam à margem















Assim esqueço
ou faço de conta
só assim vislumbro 
e avanço
rumo à estrela que sigo

Me despeço e lamento
contradigo a minha vontade
mas me liberto
desfazendo daquilo que pesa
e sobrecarrega meus passos

Se não há outro jeito
que então fique nos sonhos
o que fere e oprime
e desenlaça quando desperta
















Gosto de você
pela flor delicada e verdadeira
que em ti germina
pela água cristalina
que em ti escorre
que te faz tão viva
e renovada
pela estrela guia
que em ti desponta
noites adentro
pelas quais caminho
e jamais me perco














O bom dia que te espera
será belo como os teus sentimentos
será pleno como teus movimentos
será farto do que te sacia
será universo num grão de areia
será abrigo que te protege
será verbo que te inspira
será companhia que te desperta
e vida fora seguirá sempre contigo

domingo, 14 de maio de 2017














 A vida pensada é atributo
de quem vive plenamente
de quem percebe e indaga
de quem adiciona as partes
e não vislumbra o todo
de quem se depara com o único
e repensa o inexplicável

Os dias surgem com o movimento
as aves seguem seu rumo
o homem percorre o tempo
e se desencontra perplexo
na sua recorrente procura















Aqueles do albergue
olham pra fora e sorriem
sorriso torto
sorriso banguela
sorriso súplice
sorriso que espera e não encontra
sorriso que corre
e não alcança o mundo que foge
sorriso que procura
o mundo que se esconde
sorriso moeda de troca
que o mundo despreza
e registra em prejuízo















Considerando todos os dias
nos encontramos naqueles que já se foram
belos dias que se fizeram
como nós também éramos e nos fazíamos

Acordei hoje à tarde
numa manhã de domingo
melhor se permanecesse dormindo
assim nada teria considerado
e caso algum sonho se fizesse sonhado
despertaria desfeito e jamais seria lembrado

quarta-feira, 10 de maio de 2017





















Secam as fontes
com a sede das Bolsas
o capital se acumula
e os detritos enchem os rios

Códigos se multiplicam
florestas encolhem
o óleo se espalha
sobre a superfície marinha

Havia uma trilha
subia-se um morro
ouvia-se um pássaro
serpenteava o riacho

Um poço profundo
no meio da mata
um pântano repleto
de samambaias e sapos

Tudo isso nas telas
é como se fosse
as Companhias enterram
e edificam monturos

Grupos se agigantam
subjugam os Estados
amealham a riqueza
e impunemente destroem o planeta

Escasseiam os recursos
restringem-se os direitos
dissemina-se o ódio
potencializa-se o lucro e a miséria

Nas água oceânicas
de pacíficos atlânticos índicos
um iceberg flutua
à espera do Titanic

terça-feira, 9 de maio de 2017














Ficar quando era ordem seguir
partir quando decidiu-se ficar
mil vezes sozinho
mil vezes indo ao encontro
mil vezes ficando o vazio
das naves silenciosas
onde anjos sussurram
onde anjos escutam

















Menina bonita
beijada na esquina
sentindo-se amada
na tarde infinita

Fica com ela
a tarde infinita
pelas esquinas
que ela atravessa










Mesmo aquilo muito querido
se muito tempo guardado
resseca
é triste descobrir ressecado
aquilo muito querido
que estava guardado
é a morte do que pensávamos vivo
mas havia morrido
 morremos um pouco com ela
porque nos enganávamos
pensando que vivia junto conosco
aquilo que morto estava guardado




















Seria belo e não era
seria mágico e não era
seria sólido, gasoso
seria saboroso, insípido
seria místico, cético
seria sonho, desperto
o desejo não sabe
a chave não gira
a porta não abre
o aparente não vinga
o inevitável espera
o áspero ensina
os astros são outros
vistos de perto















Escrevo para estrelas
para o mar
para o vento
não escrevo para ser lido
escrevo o que avisto
o que ouço
o que sinto
o que fala comigo e não pronuncio
escrevo aquilo que definitivamente
em mim está inscrito

quinta-feira, 4 de maio de 2017




















Quando éramos água
nada nos detinha
escorríamos alegres pelo leito do rio
invadíamos sem medo as margens fronteiras
envolvíamos as pedras em nosso caminho
e o salto que adivinhávamos adiante
era aquilo que mais se buscava
era o sonho perfeito que nos aguardava











Vagos, incertos contornos
mito, esfinge
ícone que se preserva
encanto que o pensamento idealiza
uma imagem que oscila

Aquilo que esvanece quando entendido
aquilo que esfacela quando tocado
aquilo que desilude quando aproxima
aquilo que apaga devidamente iluminado

Fica o vazio
fica o deserto
o caminho a ser percorrido
ficam mais leves os passos
fica livre o espaço a ser descoberto