terça-feira, 28 de abril de 2020











afora as coisas dispostas pelo homem
nesta hora tudo se assemelha
à inabalável história contada pela natureza

saltam aos olhos as cores
verde margeando o caminho
branco e  azul à distância
e por todos os cantos
claro  escuro em alternância

a água rodopiando nas pedras
um canto forte que se propaga
partindo de onde não se enxerga

meio de tarde que se pronuncia
em sua notável pujança
e oculta muito bem seu mistério
no evanescente que permanece
no reconhecido que se desconhece


segunda-feira, 27 de abril de 2020









sonhos ?
há tempos pairavam
gentis e sobranceiros
depois...
ainda pude sabê-los
fugidios e rasteiros
revivê-los ?
impossível fazê-lo
seria o mesmo
que reacender fagulhas
de extintas fogueiras
ou esculpir num bloco
o rosto exato
de um ilusório vulto

domingo, 26 de abril de 2020









uma travessa, um beco
um leito de rio ainda que seco
uma fissura, um vazio
uma passagem velada para outra rua
para luas que não se exponham
para territórios longínquos
cobertos por incontáveis montanhas
ocultas sob gigantescas cavernas
compreendidas em um outro mundo
devidamente entendido como derradeiro reduto
em que permanecem exiladas 
a misericórdia e a piedade









o passado é um velho conhecido
que vive junto comigo
um viajante vindo de longe
portando considerável bagagem

por vezes torna-me alegre
comungamos semelhante vontade
de seguirmos por suaves caminhos
longos ou breves, plenos de claridade

por vezes torna-me estranho
rejeitamos a nossa aliança
algo escurece e uma passagem se fecha
um canto aziago ecoa à distância

por certo, unidos ou separados
convivemos sob o mesmo teto
curados, se refeitos  do que foi malogrado
feridos, se presos ao que não foi perdoado

sábado, 25 de abril de 2020












gosto da leitura
na qual as palavras
vão revelando
a forma mais pura
daquilo que representam
como se uma água escorrendo
fosse abrindo um mar
silencioso e profundo
que estivesse me vendo
sonhando sozinho










circunstâncias e limites
razão, liberdade, juízo
conceitos precisos
que ordenam e regulam
a vida do homem
esse ser que vaga
num mundo que acolhe e desafia
esse ser que admira
esse desafio e essa acolhida
esse ser que faz parte
e vive sempre partindo
sendo assim eterna visita
que nunca parece à vontade

sexta-feira, 24 de abril de 2020











há incontáveis segredos nas pedras
assim me falou o caminho
enquanto repassava
as tantas histórias
que segundo me dizia
careciam o quanto antes 
de serem contadas
ou não mais responderiam 
quando fossem chamadas
pois estariam mortas e caladas
ou quem sabe loucas e esquecidas
apartadas pra sempre 
das pedras que ali ficariam
pedras somente
manifestamente avessas 
a qualquer confidência

quinta-feira, 23 de abril de 2020








até lá, será quando?
talvez seja tempo demais
talvez seja tempo somente
desde que ele não seja marcado
desde que ele não seja notado

pela manhã o sol brilhou intensamente
assim como ontem houvera brilhado
assim como sempre brilha em abril

nada é tão forte
como o que se apresenta
e permanece diante de nós
para que façamos a devida leitura

o que se passa lá fora
cá dentro tal e qual se afigura
o abatimento ou a cura
despontam do entendimento








um amigo me advertiu
que ainda se escreve mensagem de amor
com certa originalidade e algum refinamento,
a despeito disso suceder em extrema circunstância
segue a mensagem registrada no celular
encontrado algum tempo depois.

“ C..., já sei tudo o que se passou, não se aflija,
não há mais nada a dizer, estou a caminho, não demoro
espere, por favor, logo estarei aí com você.”

segundo os testemunhos  proferidos
os dois foram encontrados no mesmo leito
e pelo visto os corpos sem vida
lá estavam há não muito tempo.

quarta-feira, 22 de abril de 2020











será de um dia de sol
que haverei de me lembrar
quando a vida estiver
pronta para me deixar

se será este o final
para todo o meu ser
morrerei tal e qual
nasci sem nada saber

tudo que terei a dizer
é que passei por aqui
e a isso foi que aprendi
chamar por nome viver

confesso que lá estarei
pensando sem decidir
que o justo seria partir
que o melhor seria ficar









por causa do que
vai-se além
se surge o porquê
não se sabe o que vem

o fracionado se completa
o inteiro se despedaça
dividida duplica-se a unidade
mito ou verdade?

era uma vez um caminho
que se tinha por certo
ora é a vez do caminho
que os passos acertam

o que reluzia no escuro
já não se vislumbra no claro
eram novos os olhos fechados
são velhos os olhos abertos

bem medidas as causas
presumem-se os equivalentes efeitos
bem contada a mentira que seja
resigna-se àquilo que não se explica direito









pra mim o amor 
foi o que eu houvera esperado
se por acaso alguma coisa
tivera  ele me prometido

nada de mais
que pudesse ser acrescido
nada de menos
que pudesse ser retirado

foi pleno
como um dia de sol
foi  terno
como a chuva lá fora

nenhum ressentimento
que o coração houvesse guardado
nenhuma ferida
que a palavra não houvesse curado

arte sonhada e vivida
da qual  carece ser dito
o amor para ser infinito
há que ter um amigo ao seu lado



terça-feira, 21 de abril de 2020









renascer dali
de onde o raio de sol
ilumina e realça
a brancura da nuvem

renascer dali
de onde as pedras se tocam
e resulta o caminho
revestido de vazios e de rochas

renascer dali
de onde viceja a inocência
e a criança faz deste mundo
seu brinquedo absoluto

renascer dali
de onde se inscreve a palavra
clara e pura feito água
da chuva que escorre na relva












das velhas imagens sobre a mesa
sobrevêm o invisível que me atinge
com contundência e firmeza
e nostalgicamente me deixa
aonde sentia que pudesse estar
e subitamente me leva
aonde pressinto que jamais vou chegar











a árvore vista de perto
colosso fincado no chão
seu tronco espesso
sua copa imensa

reduto do ardor do sol
da fúria do vento
da umidade da chuva
do canto dos pássaros

a árvore vista à distância
da estrada que circunda o morro
um marco escuro
na vastidão do campo

templo de sombra e solidão
guarda em si
a alegria da manhã
a melancolia do entardecer
e nada além
que lhe faça sentir
que lhe faça pensar
que ultrapasse o seu ser

templo de sombra e solidão
colosso fincado no chão

domingo, 19 de abril de 2020











a travessia da vida
sem que o mar não se apresentasse
sem que não se ouvisse o canto dos pássaros
sem que o verde não germinasse na paisagem
sem que a beleza não florescesse na juventude
sem que a inocência não reinasse na infância querida
sem que nada disso ficasse marcado
pelo que foi antes que pensado
visto, falado, ouvido, sentido
profundamente amado
eis que travessia
desta vida não seria









adivinha-se a tragédia
nos seus  primeiros passos
assim como adivinha-se
o tempestuoso destino
de uma filha que se viu nascer
de ambas são tais os pendores
que é possível antever
as dores e o sofrimento
que ao longo do tempo
haverão de prevalecer
e tal tragédia posta em marcha
em nome da morte prosseguirá
até quando se confrontar
com tamanha tragédia
da qual somente a vida há de restar

sábado, 18 de abril de 2020







o do meio permaneceu
ali onde estava
esperou o que lhe aguardava
mirou o alvo que não se definia
pensou que tarde nunca seria
decidiu  que o tempo lhe pertencia
desprezou o da beirada
que a seu ver se excedia
invejou o da outra beirada
que a seu ver bem se manifestava
quando se deu por achado
muita coisa havia mudado
quase todos  tinham partido
então ali já não era onde estava
não  sabia o que esperava
nem mirava , nem  definia
tardiamente então descobriu
que jamais haveria
o tempo perdido, 
que inadvertidamente, 
assim ele julgara








pode ser, não sei
que sobrevenha uma cantoria de bem te vi
no derradeiro momento
em que eu estiver por aqui
pode ser, não sei
que o silêncio final
seja esse canto tão presente
em tantos  dias que vivi
e  mal percebi
o quanto em si diferiam
por sorte,
nesta vida ainda aprendi
que é sempre outro 
o mesmo canto que ouço
destes dias de bem te vi

quarta-feira, 15 de abril de 2020









aos amigos me revelei
com prudência e carinho
jamais me furtei 
ao que estimo e admiro
cuidei ser sincero
ao limite de não ser estouvado
longe de os condenar 
e sequer julgá-los
penso que se confundiram
no torvelinho das palavras,
afinal são tantas 
para expressarem as nossas ideias
- haja vista os milhares que escrevem
e os milhões que interpretam -
assim, apesar do equívoco
resigno-me a aceitar a sentença
entretanto afirmo, nada disso importa
diante da amizade que em mim permanece
sem mágoa, sem mácula

terça-feira, 14 de abril de 2020









o que vem manifesto
em indizíveis sinais
anômalo insidioso funesto
o que vem manifesto
em escandalosos sinais
fatal retumbante voraz
assombramento que oculta
o fio dos caminhos
pigmento que turva
cristalinas nascentes
mandamento que aniquila
castos intentos
infausto salvo conduto
a um destino que vela impassível
a solidão de corpos insepultos

domingo, 12 de abril de 2020








a face que ora contemplas 
e não reconheces
é a que renovada 
jamais envelhece
é a que por ajustares
o mundo às tuas preces
escarnece da salvação
em nome da boa vontade
é a que por ajustares
o mundo às tuas razões
zomba do fogo fátuo
que a voragem consome

sexta-feira, 10 de abril de 2020












se nos tira daqui
nos tira do nada
e seguindo pela tua paupérrima estrada
recebemos da tua generosidade
o muito que jamais recusas
e graças unicamente a ti
nossos corações se inflamam
e nos reconhecemos na chama do nosso olhar
e nos entendemos num só movimento
que a tua música incessante
transforma em livre dança
que sobrepuja e aniquila
toda miséria de tempos desumanos

quinta-feira, 9 de abril de 2020










em tempos de terra plana
apenas segue-se adiante
entanto, como sabidamente
a dona é redonda
quiçá novamente nos encontremos
sob o sol que ora se esconde









a flor que nasceu das pedras
era do Carlos, não era minha
como minha também não era
nenhuma cotovia e nenhuma Julieta
daí que meu coração desperta
e nunca se ajeita nesta terra infecunda
em que só brotam flores raquíticas e feias
mal cultivadas por quem não se reconhece
nem poeta , nem jardineiro











se é que é isto ou aquilo
se caibo no que visto
se me assisto como aquele que vejo
se não me vejo e nada assisto
há um desistir e um desejo
e mesmo que assim ou assim pareça
não haverá êxito sem senão
não haverá descanso sem aflição










gosto do meus
mais que dos seus
os meus, que prefiro esquecê-los
os meus, que vieram e não sei mais dizê-los
os meus que só os encontro
quando busco nos seus
aquilo que me falta e desejo
aquilo que sou eu escrito em você











leio o entardecer
em companhia do incerto amigo ausente
em companhia da minha própria ausência
que determina e corrobora
tudo aquilo que leio

menino envelhecido
descarto e desprezo as palavras
apreendo o que se me manifesta
com a sensibilidade que impera
ora plena de sua soberania